- Bom dia Dr. Mabit, pode falar-nos da sua experiência do encontro com os espíritos?

É uma questão muito ampla, não é? Bom, eu sou médico ocidental, francês e cristão, inicialmente não a cem por cento, mas educado nesse contexto em todo o caso. Católico desde a minha infância com momentos, como todo o jovem na adolescência, de luta com a Igreja, mas sem nunca terminar esta relação por completo. Tanto no mundo da ciência, da medicina, como no mundo cristão católico convencional isto da existência dos espíritos praticamente não existe, nunca se refere isto, nunca se fala sobre isto.

Então eu vim para o Peru em 1980 trabalhar durante 3 anos como médico num pequeno hospital do sul do Peru e tomei contacto primeiro com as medicinas tradicionais andinas. Depois, desde há 32 anos, com as amazónicas, em contacto com os curandeiros, as parteiras, os massagistas, os endireitas, e diferentes praticantes da medicina tradicional. Aparecia nas suas conversas a referência a “contactos”, por assim dizer, com o mundo invisível. Referiam-se a este mundo invisível como a origem do seu conhecimento ou da sua sabedoria e dos seus métodos de cura.

No mundo andino tive o primeiro contacto com uma parteira indígena quechua que tinha dado à luz a quase toda a sua povoação. Perguntei-lhe donde vinha o seu conhecimento, porque vi que era muito eficaz, muito acertada nos seus diagnósticos, pelo que pude averiguar clinicamente. Eu supunha que teria os seus conhecimentos por tradição familiar, da sua mãe, da sua avó. Ela disse-me que todo o seu conhecimento vinha do facto de que quando estava nas alturas da Puna com os seus animais, lamas e ovelhas, ocorreu uma tempestade elétrica e um raio atingiu-a, foi fulminada por um raio, perdeu a consciência mas não morreu e quando despertou desta inconsciência já sabia curar! Ou seja, o seu conhecimento não vinha da sua mãe nem da sua avó, nem de algum treino por parte de outra pessoa, mas sim diretamente de uma experiência de “alteração da consciência”, para dizê-lo de alguma maneira2. Como podia eu entender isto sendo um ocidental? Por um lado, a nível clínico, eu via que era realmente eficaz. Adicionalmente, ela era uma vizinha conhecida e eu sabia que ela não era uma louca, uma pessoa delirante, mas sim uma pessoa humilde, totalmente normal. Por outro lado, ela afirmava com toda a tranquilidade e simplicidade que tudo o que sabia era resultado de uma experiência de morte iminente ou NDE (“Near Death Experience”) como normalmente se designa.

Tive depois outra experiência que me marcou bastante. Trouxeram-me ao hospital um menino de 7 ou 8 anos inconsciente, em estado de coma, que não respondia aos estímulos. Eu examino-o e não encontro nada. Faço-lhe uma punção lombar e não encontro nada. Não há infeção, nem meningite, nem lesão nervosa. Não tenho explicação, não sei o que ele tem. Era um pequeno hospital na Serra que não tinha nenhuma das técnicas modernas à disposição. Com o exame clínico e análises de laboratório básicas não encontro nada. Então decido interná-lo no hospital em observação simplesmente com hidratação intravenosa. E passa um dia, dois dias, três dias, o rapaz está igual, nem pior nem melhor. Os familiares começam a duvidar das minhas capacidades como médico, “o doutor não faz nada”, e eu não sei o que fazer. Não lhe vou dar antibióticos, por exemplo, por prazer. Comecei então a escutar os familiares para conhecer a sua opinião e explicação do sucedido. Conversei com eles com a ajuda de uma enfermeira que falava quechua e que podia aceder ao seu mundo cultural. Disse-me que para eles isto ocorreu quando o menino estava a brincar no pátio e caiu, e a Terra, a Pachamama, chupou-lhe a energia, absorveu a sua força vital, e por isso estava como desvitalizado, com a bateria a zero. Para eles isto era a causa do seu desvanecimento. Como estava um pouco desesperado, sem respostas, sem diagnóstico e porque os familiares estavam dispostos a tirar o menino do hospital vendo que não havia nada a fazer, ponho-me a pensar durante a noite sobre o que posso eu fazer usando a lógica dos familiares. Já que não tenho nenhum argumento racional ou científico, decido raciocinar com base na sua hipótese, ou seja, uma perda brusca de uma energia vital, seja o que for. A energia deve ser-lhe devolvida, mas como devolver-lhe a energia?

Pensei que talvez colocando uma botija de água quente nos pés e no plexo solar, o calor poderia restituir alguma dessa energia perdida, seguindo a sua lógica. Como não sabia o que fazer, decidi tentar. Era um hospital pequeno e não tínhamos quase nenhum recurso técnico, então tínhamos que improvisar com o que se tinha à mão. Fiz isso e nessa noite rezei porque se não funcionasse, o que mais se ia fazer?

No dia seguinte, o menino reagiu e abriu os olhos, como se despertasse de um sono profundo, embora com pouca energia, mas já não em estado de coma. Continuei com esse tratamento e comecei pouco a pouco a alimentá-lo. Ele começou a mover-se, a comer e em poucos dias, simplesmente com as botijas de água quente, o menino recuperou totalmente. E isto foi uma boa publicidade para mim na povoação porque diziam que “o doutor o tinha salvado”. O menino continuou a visitar-me durante toda a minha estadia em Lampa.

Se bem que me interessam os debates teóricos, como médico dou primazia à experiência clínica. Nestas circunstâncias, a lógica local tinha dado resultado. Forçado pela situação, eu tinha aceitado sair da minha lógica e integrar-me na dos locais, e isso foi muito importante, tanto para quebrar os meus esquemas mentais como para a minha relação com os quechuas indígenas locais.

Espiritus1

Este tipo de experiências, e muitas outras mais (não posso contá-las todas), puseram-me em contacto com o facto de que esta outra lógica que outra cultura me mostrava, teria um certo grau de coerência, era congruente com a realidade, funcionava. Agora, eu como ocidental, como podia entender isto?

Quando vim para aqui, para a Amazónia, este desafio foi amplificado. Eu contactei curandeiros indígenas e mestiços com a intenção de aprender através da minha experiência pessoal. Não queria somente que me partilhassem o seu conhecimento mas sim experimenta-lo, vê-lo desde o meu interior. Porque de facto os curandeiros têm um discurso muito pobre em termos racionais que me deixava insatisfeito. Quando, por exemplo, perguntava a um deles porque ou como uma determinada planta cura, ele respondia dizendo: “ Porque tem uma força curativa”! E com isto uma pessoa não pode progredir muito.

É que a expressão verbal dos curandeiros é do tipo metafórico. Utilizam imagens, o que é próprio da linguagem do hemisfério direito do cérebro. E, como todos os ocidentais, eu estava treinado mais que tudo para usar o cérebro esquerdo, a linguagem racional. Então, contactei muitos curandeiros e sempre lhes perguntava se eu, como médico ocidental, podia experimentar e assim aprender a sua medicina. E diziam-me: “sim, mas se tu queres aprender, nós não te vamos ensinar, quem te ensina são as plantas, porque as plantas falam contigo. Tens que tomar as plantas, apenas assim vais entender. As plantas fazem-te ver como num televisor”. E o que significava isso para um ocidental? Nunca nenhuma planta tinha falado comigo. Tinha dificuldade em imaginar como seria este tipo de aprendizagem.

E finalmente decidi que, se eu queria realmente conhecer esta medicina, teria que seguir outra vez a lógica deles. Eles eram os especialistas. Dei-me conta que se eu começasse a racionalizar e a funcionar usando a minha lógica, não me iria servir de nada. Então devia deixar de lado durante algum tempo todos os meus critérios científicos, as minhas categorias conceptuais e aceitar até o mais “irracional” para mim. Se eles me dissessem para fazer o pino, teria que o fazer. E, após três ou seis meses, retornar à minha realidade, à minha lógica, criar uma distância e analisar o sucedido segundo as minhas regras de leitura habituais, avaliar se tinha aprendido algo, se era coerente, como eu estava.

Comecei então a tomar ayahuasca com um curandeiro aqui em Tarapoto. Fui projetado num mundo totalmente desconhecido, num estado alterado de consciência, com visões, um mundo visionário. Foi uma experiência fundamental para mim e depois para Takiwasi.

Na primeira sessão tive tanto medo que bloqueei, não aconteceu nada. Nunca tinha tomado substâncias, nunca tinha consumido drogas, então estava muito assustado. No final senti-me um pouco estúpido quando me dei conta que me deixei dominar pelo medo. Os pacientes locais que estavam na mesma sessão e que eu tinha visto a chorar, vomitar, gritar, estavam alegres e a rir. Eu não tinha podido atravessar o limiar. Eu não podia ficar com esta sensação de fracasso.

Passados 2 dias voltei a tomar com o mesmo curandeiro e dessa vez não tive tempo de ter medo. Fui projetado bruscamente para um estado de consciência totalmente novo e não podia controlar nada. Tinha visões, mas não era como uma visão distante num ecrã, estava a viver a visão, eu vivia nesta realidade visionária.

Nesta sessão tive um encontro com uma jiboia negra gigante que começou a lutar comigo, a enroscar-se em mim e assustou-me porque era uma experiência muito real. E puxava-me para o fundo de um abismo escuro, sem fim. Era algo muito assustador, aterrorizante. E eu lutava e lutava e não podia dominar a jiboia, era ela quem me dominava. Isto foi muito angustiante e pareceu durar uma eternidade. Ali perde-se a noção do tempo.

Estava totalmente absorbido pela experiência, por esta luta de vida ou morte. Dei-me conta pouco a pouco que não podia superar esta força letal e que ia morrer. Então passaram pela minha cabeça todos os pensamentos próprios de alguém que vai morrer.

A raiva. “Que estúpido porque não fiquei tranquilo em França e tive um consultório meu em vez de vir para aqui, isto é um tóxico, não é para ocidentais, é apenas para indígenas”. Depois a tristeza. Que ia ser dos meus pais que ficariam a saber no dia seguinte que o seu filho tinha morrido ao tomar uma planta com indígenas? Vi o caixão, as pessoas que iam ao meu funeral. Remorsos por tudo o que não tinha feito ou dito antes de morrer. A luta continuava e pouco a pouco a morte apareceu-me como um facto inevitável. A minha sorte tinha sido lançada. Era assim e ponto final, não havia saída.

Então veio a aceitação. Aceitar progressivamente a ideia de que a minha vida terminava assim. Não havia mais nada a dizer nem mais nada a fazer, apenas aceitar.

E logo me dei conta que apesar de tudo a vida iria continuar. Tanto para a minha família, uma vez passada a tristeza, como para as pessoas daqui, de Tarapoto. Talvez saísse no jornal que um francês tinha morrido ao tomar ayahuasca e iriam dizer “ah” e depois iriam tomar o seu pequeno-almoço. Não iria mudar a vida de ninguém, nem afetar muitas pessoas, muito menos a sociedade em geral ou o mundo inteiro. Então pouco a pouco veio a aceitação total: é assim.

Nesse momento, surgiu-me uma frase, que saía de mim mas como se viesse de algo mais além de mim, e disse interiormente: “Jacques não tem importância”. Uma espécie de evidência clara de que o mundo não necessitava de mim e que podia viver sem mim, que eu não tinha nenhuma importância. E repeti esta frase três vezes como uma verdade absoluta porque já me despedia deste mundo.

“Jacques não tem importância, Jacques não tem importância, Jacques não tem importância”. Três vezes…

À terceira vez, surpreendentemente, a jiboia soltou-me de repente e desapareceu. E dei-me conta que já não ia morrer. Não podia crer. Contudo, estava no fundo do abismo, mas livre e capaz de voltar à superfície.

E vieram muitas coisas à minha mente. Podia associar esta falsa “importância” que eu tinha com uma série de eventos e situações da minha vida. Esclareciam-se comportamentos e relações, o que tinha ocorrido até aquele momento. Cheguei a dar-me conta de como antes disto me dava importância e como isso se tinha manifestado na minha vida social, profissional, familiar, amorosa. Enfim, apareceram as numerosas ramificações desta crença egóica sobre a minha própria importância, como manipulava inconscientemente o meu comportamento.

Voltei pouco a pouco à superfície, saía por etapas deste abismo como um mergulhador que retorna do fundo do mar. E aproximava-me da consciência comum. Contudo assustado, pensava: “Nunca mais vou tomar ayahuasca, não é para ocidentais”. E tinha novamente associações e compreensões e fascinava-me esta claridade mental. E subia mais um nível, com outras cautelas menores e outras associações. Até chegar à superfície, à consciência, voltar à sala onde acabava de se realizar uma sessão de ayahuasca. Tive então a sensação de realmente ter feito uma descoberta fenomenal, e disse: “Isto é o que eu procurava”. O que eu procurava sem saber. A verdade sobre mim.

Esta jiboia é o espírito da ayahuasca. A forma como é visualizada. A que me levou a este combate, esta luta e a esta tomada de consciência tão importante. Dominou o meu ego. Uma forma de morte do ego, uma morte parcial porque na realidade nunca morre, mas uma primeira morte. Com o prémio de uma libertação incrível. No final eu tinha entendido mais coisas numa só noite do que tudo o que eu antes tinha podido refletir, ler ou pensar.

Uma medicina forte que abrange o corpo, as emoções e a espiritualidade, o sentido da vida e da morte. Este foi o primeiro encontro com o espírito da ayahuasca.

Eu continuei a tomar e na oitava sessão de ayahuasca tive outra experiência fundamental para Takiwasi. Vi-me na selva, de pé em frente a 12 personagens sentados em semicírculo, com aparência de indígenas. Sentia-me como um estudante perante um júri de uma universidade. Era impressionante. Falaram-me, dizendo: “Somos os espíritos guardiões da selva”. Nunca tinha ouvido falar disso, era uma coisa inimaginável para mim, fora da minha cultura. Acrescentaram “Tu, porque tomas ayahuasca?”. Estava muito impressionado e respondi-lhes que queria aprender esta medicina. Então consultaram-se entre si e finalmente o que estava no centro, como presidente do grupo, disse-me: “Tu estás autorizado a entrar neste território”, essa foi a frase exata que ele me disse e deu-me desde então uma sensação de legitimidade no que faço. E acrescentou: “Tu podes entrar, mas o teu trabalho, o teu caminho vai passar por isto”, e então vejo-me a curar pessoas viciadas, toxicodependentes. Foi uma surpresa total porque não é algo que eu tinha pensado fazer nem me interessava especialmente este assunto. Nem tinha consumido drogas, nem bebia álcool e nem fumava tabaco. Tinha-me embriagado uma única vez com cerveja e tinha-me sentido péssimo. Nem havia problemas de dependência ou alcoolismo na minha família direta.

Todo o projeto do Centro Takiwasi foi fruto destas experiências. Embora tenha resistido inicialmente a empreender esta aventura porque não gostava da ideia. Parecia-me muito complicado, exigente, fora dos meus interesses. Demorei 3 anos a decidir-me depois de outra sessão desafiante de ayahuasca.

Não tinha ideia de como e onde fazer um centro, quem me iria ajudar, com que fundos. Mas depois tive constantemente indicações, em estado modificado de consciência induzido por plantas, em sonhos ou mesmo na vida quotidiana através de sincronicidades.

Por exemplo, quando procurava um local para estabelecer este centro, visitei diversos lugares. Entre estes existia um terreno abandonado, próximo da cidade e perto do banco do rio Shilcayo. Numa sessão de ayahuasca foi-me dito que “este é o sítio”. Então vou falar com a proprietária e digo-lhe que quero comprar o terreno. Ela disse-me “não, não está para venda, não quero vende-lo”. Parecia contradizer o que tinha escutado na sessão de ayahuasca. Volto então a tomar ayahuasca, questionando a indicação recebida. Desta vez é-me indicado: “Espera, ela mesma, a proprietária, vai-te procurar”. Então esperei e efetivamente 2 meses depois essa senhora vem ter comigo e diz-me que lhe tinham feito uma proposta para comprar uma farmácia em Lima, um negócio interessante e não o queria perder, mas não tinha capital suficiente. A única hipótese que lhe restava era vender o terreno e em 8 dias eu já o tinha.

A confirmação dos factos demonstra a coerência de todas essas inspirações porque eu também era muito cético. A sugestão ou a imaginação não podem explicar essas coerências repetidas. Essa congruência com a vida quotidiana assinala que neste mundo invisível impera uma grande inteligência. E não podem ser somente fenómenos do inconsciente pessoal já que inicialmente contradiz as próprias expectativas. Não queria morrer na primeira sessão nem cuidar de viciados na oitava. É surpreendente, contradiz as expectativas e ao mesmo tempo demonstra coerência com a vida quotidiana. E aqui está Takiwasi com 25 anos de existência. E seguimos sempre pobres, mas com esperança nesta providência que nunca nos falhou, embora pondo à prova a nossa confiança.

Pouco a pouco foi-se enriquecendo esta cartografia do mundo invisível. À minha maneira, diria que cada elemento da criação sensível está presidido por uma entidade tutora, um espírito ou melhor dito uma presença angelical. Trata-se do mundo intermédio, o mundo da criação invisível. Com os sentidos percebemos os minerais, os vegetais, os animais, o cosmos e o ser humano. Existe outra dimensão que é a criação invisível para nós quando estamos num estado ordinário de consciência. Este mundo invisível está povoado de seres também criados, mas incorpóreos, que não têm existência física ou material, mas que estão dotados de inteligência, liberdade, vontade e presidem a todos os elementos do mundo físico. Assim, existe um espírito para cada gruta, rio, árvore e todos os elementos da criação natural. Também existe para cada complexo como uma pessoa, para cada cidade, cada país, cada instituição como Takiwasi, cada família. Mas também um espírito ou entidade angelical preside às funções psíquicas, às emoções, que não são propriamente coisas materiais, mas participam da encarnação. Assim, existe um anjo da bondade, um anjo do perdão, do amor, da amizade, etc. Mas também existem entidades espirituais que presidem ao que percebemos como negativo: anjo da cólera, da raiva, o espírito do incesto, do suicídio, etc. Tradicionalmente são chamados de maus espíritos, anjos negros ou demónios.

Tudo está presidido por seres do mundo intermédio, digo intermédio porque localiza-se em cima da criação e por baixo da divindade. E este mundo dos espíritos é dualístico, é branco ou preto, há bons ou maus espíritos. Mas bem, na nossa realidade humana, não somos totalmente bons nem totalmente maus, nem brancos nem negros mas sim cinzentos, há uma mistura, somos ignorantes, até certo ponto não sabemos o que fazemos. No mundo espiritual, intermédio, os espíritos sim sabem, submetem-se ou não à divindade.

Quando comecei a tomar, pouco a pouco a aprender e depois a curar, pensei inicialmente que a medicina era realmente medicina pura e que toda a negatividade procedia de mim ou de outras pessoas. O meu objetivo era usar as plantas para ajudar as pessoas a nível psicológico, emocional, relacional. Mas rapidamente me dei conta que havia inevitavelmente um encontro com estes seres espirituais. Com os seres bons, os anjos, não havia problema, pelo contrário. Mas o encontro com demónios ou maus espíritos foi um grande desafio para mim. E foi patente que muitas pessoas estavam doentes porque estavam parasitadas ou contaminadas de alguma forma com entidades malévolas, malignas. O trabalho de limpeza, de cura, consistia então em expulsá-los, exorcizar. Eu não gostei nada disso, nunca tinha pensado em ter estas exigências, não tem nada de agradável nem de engraçado. Mas não era uma questão de escolher ou não, se não de aceitar e enfrentar esta realidade. Ou teria que abandonar ou teria que enfrentar.

Então pouco a pouco fui encarando este problema com medos, angústias e dúvidas. A maior dificuldade era discernir, quando estava em contacto com as entidades, com os seres, se se tratava de um anjo ou de um demónio. Donde vem, como age, como enfrentá-lo? Os demónios têm milhares de táticas e truques para enganar. Não é por acaso que são classificados como malignos. Apresentam-se como espíritos bons, adotam a aparência da divindade, da Virgem, de Cristo, de mestres. Tantas formas simpáticas e bonitas. É a estratégia da sedução.

O desafio consiste então em detetar essas fraudes mediante critérios de discernimento que permitem saber com quem se entra em contacto voluntaria ou involuntariamente. E esse afinamento do discernimento nunca termina, não é absoluto. Pode sempre ser melhorado.

Durante todo este processo, este caminho, dei-me conta que esta experiência clínica, de observação empírica, que tinha que integrar, entender, era coerente com a teologia católica. Isto veio depois já que, como a maioria dos católicos, nunca me tinham falado disto. Parecia pertencer a uma história do passado, de certo obscurantismo. Nunca se ensinam estas coisas na atualidade.

Nem mesmo os sacerdotes acreditam que exista o mal personificado em entidades. Todos os fenómenos desta natureza são racionalizados e reduzidos a produções simbólicas, criações ou elaborações do inconsciente, de ordem psicológico pessoal ou coletivo, virtual, em resumo. Tudo finalmente visa de alguma forma negar essa realidade. Contudo, Jesus nos Evangelhos demonstra-nos muitas vezes que o seu trabalho consiste em expelir os demónios, impor as mãos e libertar os doentes. Inclusivamente é ele quem diz aos seus discípulos sob forma de testamento: “Curem os doentes, imponham as mãos, expulsem os demónios e preguem as boas novas da libertação”. Mas agora quem acredita nisto e o pratica?

Ao princípio parecia-me que todo este mundo invisível estava totalmente afastado e inclusivamente oposto à fé cristã. Eu era ignorante sobre esta dimensão mística da vida. Mas pouco a pouco, aprofundando a doutrina, a leitura dos textos, da bíblia, encontrei uma coerência absolutamente incrível. Eu comecei a levar a cabo essa luta espiritual e foi evidente que necessitava de ferramentas espirituais. Todo este mundo invisível superava-me muito. Na luta, não era eu, Jacques, que tinha que lutar contra os espíritos malévolos, mas eu era sim um soldado que devia rezar para chamar os espíritos bons que iriam liderar a luta. A luta desenrola-se sobre a minha cabeça. Mas sim, é necessário pedir, rezar, suplicar.

E os bons curandeiros também fazem isto. Chamam os espíritos das plantas medicinais, dos seus mestres curandeiros. Isto já constitui um nível exorcista. Adicionalmente, no “banho cultural cristão” da América não param de invocar os santos, a Virgem, os anjos, Cristo. São Miguel e todo o panteão cristão concedem uma força descomunal nessas lutas e tem evidência clínica, por assim dizer.

Fui descobrindo esta dimensão das medicinas tradicionais amazónicas já que não há nada escrito sobre isto na literatura antropológica. São considerados como meros factos culturais sem uma verdadeira consistência nem dimensão universal. A rejeição do mundo académico e do Ocidente em geral à realidade das dimensões místicas impede uma abordagem razoável e serena desta temática. E não permite aceder à prática, à avaliação clínica. Para mim, a melhor prova continua a ser a clínica. Uma hipótese é confrontada com a prática e se é possível curar as pessoas segundo esta lógica e estes modelos, isso demonstra a sua consistência. É o que, por exemplo, tentamos demonstrar com os pacientes toxicodependentes. Sabemos o quanto é difícil tratar estes problemas de dependência, mas com esta abordagem, sim pode-se curar.

Uma história sobre isso a título de ilustração. O pai de uma mulher norte-americana, que é meu amigo, contactou-me para solicitar que visse a sua filha de 38 anos de idade e que estava a receber tratamento psiquiátrico desde os oito anos de idade. Normalmente não vejo estes casos, mas é um amigo e aceito ver se for possível. Esta mulher tomou todas as classes de medicamentos psicoativos e continua mal. Tem pesadelos todas as noites com a sensação de uma presença ao seu lado. Quando essa mulher veio e me aproximo dela pela primeira vez, eu percebo ao lado dela a Virgem e no outro lado uma entidade, um espírito mau. A presença da Virgem conforta-me e dá-me ânimo para enfrentar o espírito maligno. E eu digo à mulher: “Tu tens um espírito ao teu lado!”. Ela olha para mim surpreendida e pergunta-me: “Tu és médico?”. “Sim, sou médico”. Ela prossegue: “Há 30 anos que digo aos médicos que há um espírito ao meu lado e eles não acreditam em mim. É a primeira vez que alguém acredita em mim. Inclusivamente dei-lhe um nome porque vivo com este espírito há 30 anos, é quase como um companheiro.” Só que o companheiro estava a estragar a sua vida e perguntei-lhe se ela estava disposta a abandonar este vínculo porque não era um amigo bom, era sim uma entidade perturbadora. E aceitou. Pedi-lhe para ela fazer exatamente o que eu lhe iria indicar. “É uma luta, uma batalha e o outro vai tentar interferir, para não se ir embora, vai querer fazer-te fugir, abandonar o tratamento”. Comecei por fazer unicamente curas com tratamentos sobre o corpo energético e orações. Nem sequer tomou uma vez ayahuasca. Em 8 dias, e para mim isso foi espetacular, a entidade desapareceu. Ela deixou de tomar todos os seus medicamentos. Desde uns 4 ou 5 anos que continua normal e sem medicação.

Isso, para mim, são provas, a cura demonstra a coerência do diagnóstico. Invocar a sugestão é considerar que todos os seus psiquiatras, durante 30 anos, não souberam ver o que se passava e a medicaram por prazer. Ou seja, sugestionou-se ela, os seus psiquiatras e eu. Mas agora está curada. Adicionalmente, quando estamos nestas lutas, trata-se de uma experiência sensível, sente-se fisicamente, corporalmente. Não é somente de ordem mental já que essa realidade espiritual afeta a dimensão encarnada, tanto o bem como o mal. Aqui introduz-se precisamente esta questão da encarnação.

É muito difícil conceber isto por alguém que nunca viveu estas experiências, que não o tenha experienciado no seu corpo. Surgem muitos fenómenos paranormais, de experiências extrassensoriais.

Inicialmente a pessoa não deteta que se trata de um espírito mau, não discerne a sua malignidade. Na base da sedução, esta presença vai empurrar a pessoa para o mal, alimentando a sua parte narcisista. E a pessoa, seduzida, submete-se inconscientemente a esta entidade. Sugere-lhe, por exemplo: “És livre, liberta-te dos tabus e das limitações, tu podes ter relações sexuais com quem quiseres, o corpo é teu, ninguém te pode impor nada…” e assim levar uma vida sexual promíscua em nome da liberdade.

Quando, mediante as plantas ou a oração, uma pessoa dá-se conta de que não é algo assim tão bom, que há algo ou alguém que lhe está a sugerir essas coisas negativas, quando a sedução deixa de funcionar, este espírito que se apresentava numa forma sedutora, simpática, bonita, mostra então o seu outro lado e nessa altura a pessoa vê o seu aspeto demoníaco, malévolo. E assusta-se. E podem ocorrer fenómenos paranormais. Aparecem animais repugnantes, as luzes ligam e desligam sozinhas, a porta fecha sem que ninguém lhe toque, há ruídos estranhos, sente-se algo esquisito no ambiente, tem arrepios, gerando angústia, sustos e até pânico.

E é a segunda estratégia dos espíritos malignos, assustar a pessoa, submetê-la usando o medo. A pessoa não quer saber de mais nada e prefere ficar como está por medo.

Quando uma pessoa enfrenta o medo, armando-se com a fé, com ferramentas espirituais, a terceira estratégia é o desânimo. O espírito maligno sugere que nunca serás capaz, que a tua vida vai ser uma desgraça, que vais sofrer muito, não serás capaz de te casar, etc. E uma pessoa pode chegar a submeter-se pelo desânimo, o desespero, o cansaço.

E assim existem outras estratégias malignas. Contudo, há quase sempre essas grandes estratégias que uma pessoa pode detetar e que permitem lutar melhor quando se sabe como funciona. Porém, este mundo espiritual é tão amplo, imenso como a selva. Tu podes conhecer 10 ou 50 plantas, mas há milhares mais por conhecer. Somos muito pequenos e limitados com as nossas próprias forças, necessitamos de ajuda espiritual.

Os espíritos existem, mas nem todos são bons, e portanto toda a abertura ao mundo invisível é arriscada, potencialmente perigosa. Portanto, uma pessoa necessita conhecer a maneira como deve abrir-se a este mundo com os cuidados necessários. O caminho em direção à divindade atravessa este mundo angelical, espaço de mediação, dos mediadores, pelo que é inevitável. Mas não se pode abordar de qualquer maneira, está relacionado com a vida mística.

Assim as pessoas vivem isto profundamente quando abordam esta dimensão com as plantas, sentem-se “tocadas”, não sei que palavra utilizar, tocadas na sua alma, na sua mente, no seu coração, no seu corpo. E já não se pode dizer que isto não existe.

Muitas pessoas têm raiva e ressentimentos contra a Igreja, contra a instituição, com o passado ou o presente da instituição que os afasta. Parece-me que a oposição à Igreja por sua história é amplamente exagerada por uma espécie de lenda negra de propaganda anticristã embora sem dúvida existem coisas reprováveis. Mas, depois dessas experiências místicas, isso não importa, torna-se secundário porque vai-se diretamente ao coração das coisas. É como a tua família à qual podes reprovar também muitas coisas, mas mesmo assim é a tua família, e vais amá-los apesar de tudo. Quando uma pessoa vai ao coração das coisas, tudo se relativiza, o essencial permanece.

A experiência mística precisa de alguma maneira de democratizar-se. Apresenta-se como uma espécie de coisa reservada a pessoas extraordinárias, a santos fora do comum. E nós não somos Santa Teresita nem o Padre Pio. Então a vida mística não seria para nós. Mas é necessária a conexão espiritual direta, sensível, cada um ao seu nível.

Se ela não existe então é como ter uma relação amorosa platónica ou conceptual com uma mulher sem sentir nenhum calor amoroso, apenas gostas da estética do seu corpo, seduz-te a forma como ela fala ou a sua inteligência, mas não te tocou o coração, nem as tuas entranhas, nem o teu ser profundo. Esta relação não vai durar muito, não vai amadurecer, não é viva nem autêntica. A vida espiritual é como uma relação de amor ou deveria sê-lo.

Então tudo o que pude descobrir e continuo a descobrir nessa imensidão da exploração das medicinas tradicionais, do mundo invisível ao qual as plantas dão acesso, parece-me cada dia mais e mais coerente com a experiência cristã. vice-versa, a experiência cristã permite viver muito melhor essas vivências, esta exploração, esta aventura espiritual.

Esta relação não é nova, existiu no cristianismo, mas pouco se vive na atualidade porque se deixou de lado à medida que a Igreja se foi racionalizando ao ritmo da sociedade civil. Submeteu-se ao pensamento racionalista e positivista ocidental, esqueceu-se das suas raízes e assume agora que são coisas folclóricas, do passado, obsoletas, que já não têm vigência hoje em dia. Esse ponto de vista parece um grande drama para mim.

Muitas pessoas sofrem na atualidade porque estão submetidas a estas forças espirituais malignas não identificadas. Às vezes são problemas relativamente fáceis de resolver, outras vezes nem por isso. Mas enquanto não se recuperar esta noção da possível interferência maligna, uma pessoa pode estar anos submetida a esses distúrbios, a esses sofrimentos, e não se consegue libertar. O que dói é ver que a Igreja dispõe das ferramentas eficazes para resolver esses problemas e não as usa.


- Na sua opinião, Dr. Jacques, um espírito mau pode mudar (transformar) a sua atitude, e tornar-se um espírito bom graças à atividade dos seres humanos, dos curandeiros e dos médicos?

Não, os espíritos são bons ou maus de forma definitiva. Não há como voltar para trás nem a opção de mudança. Muitas pessoas dizem-me “sim tenho uma coisa má, mas isso ajuda-me porque dá-me experiência, permite-me aprender algo, estimula-me, quero mantê-lo”. Então proponho-lhes fazer uma sessão de ayahuasca para que possam ver de frente quem é o seu suposto amigo. E no dia seguinte já não querem saber mais do famoso companheiro. Quando se revela plenamente a sua malignidade, ninguém o quer mais. É outro engano da sedução.

Não podemos amá-los, não são pobrezitos, porque o seu estado é o resultado de uma opção livre, de pleno conhecimento. Nós sim temos direito ao perdão, à misericórdia, porque optamos pelo mal por ignorância. O pecado no seu significado original em hebraico “hett” é um termo de tiro com arco que significa apontar fora do alvo, desviar do caminho por ignorância desajeitada, por erro, então pode ser corrigido, pode ser reparado.

Os espíritos do mundo angelical tomam a sua decisão com pleno conhecimento das consequências e de facto não desejam voltar atrás. Portanto, não têm nem a possibilidade nem o desejo de mudar. Uma das estratégias dos demónios é precisamente negociar, tentar convencer as pessoas que sim podem mudar, que não os abandonem, para manter um vínculo que os retém. É tempo perdido e muita pretensão propor-se a mudar um demónio. A única coisa que se pode fazer com um espírito maligno é expulsá-lo.

Agora bem, temos que perguntar mais além do procedimento de expulsão, do exorcismo, por onde entrou, porque existe este contacto com essa entidade maléfica. Qual é a porta de entrada?

Pode vir da vida pessoal, de algo incorreto que se tenha feito, de alguma transgressão das leis espirituais, de alguma prática esotérica, de espiritismo, satanismo, abusos de todo o tipo, etc. Essas transgressões estabelecem de maneira consciente ou não uma forma de pacto, de convénio, de acordo a vários níveis com os espíritos que presidem a essas transgressões. Concede-lhes algum poder durante algum tempo sobre essas pessoas. Nas práticas ocultas, o convénio dá também poder por algum tempo a essas pessoas, capacidades fora do comum, mas no dia em que deixarem de ser úteis, esses mesmos espíritos vão comê-los vivos, vão descartá-los cruelmente, sem piedade. Os maus espíritos não têm amigos, somente escravos. Então, deve-se primeiro pesquisar no seu próprio passado, na biografia. Se a transgressão tiver sido consciente, com entrega total (pacto de sangue, por exemplo), as consequências serão mais graves.

Também pode ter origem em algo que me tenham feito: existe o prejuízo, a bruxaria, os feitiços, pode-se agir de uma maneira que cause dano às pessoas. Ou eventualmente pode proceder de uma contaminação exterior pela proximidade a lugares ou objetos, mesmo animais, contaminados por um espírito maligno.

Existe também a possibilidade de se tratar de uma herança transgeracional. Se um ancestral tiver tido alguma ligação com uma entidade maligna, algum tipo de pacto ou de relação com este mundo satânico, demoníaco, e esta não tenha sido limpa ou reparada, pode-se transmitir de geração em geração. Muitos casos de patologia mental explicam-se desta maneira, a pessoa foi parasitada por um ou vários espíritos, às vezes muitos, desde a sua conceção. Então nasce com esta carga e pode apresentar perturbações psicológicas, nas relações, que não são identificadas e fazem a pessoa pensar que é algo próprio dela. Chegam a pensar que assim são e assim serão. Quando uma pessoa pode detetar e integrar essa noção de vampirismo ou parasitismo, descobrir que há um “passageiro clandestino”, pode tomar medidas para expulsá-lo e recuperar a sua integridade.

Assim veem-se pessoas que, por exemplo, têm pensamentos perversos, suicidas, tendências para o abuso, o incesto, e às vezes desde a sua infância. Sofrem porque contradiz a sua liberdade, a sua moral, os seus valores profundos. Eu vi meninos de 4 ou 5 anos que dizem blasfémias sem saber o que dizem porque não são eles que falam mas sim um espírito da blasfémia que habita neles e os utiliza. Têm-no por herança. Pode-se detetar o espírito e dar a confirmação a essas pessoas que elas não são malignas por natureza ou na sua essência, mas sim que há uma entidade perversa que as parasita, que está em contacto com elas, em relação com o seu corpo.

É muito curador e libertador para essas pessoas quando se dão conta de que afinal não são um monstro, que têm um fundo bom, e que existe algo, ou alguém, melhor dizendo, contra quem têm que lutar. Que é possível vencer e conseguir a libertação. Têm-no por herança.

Em muitos casos psiquiátricos, especialmente nas patologias de dissociação, a pessoa está supostamente dividida entre duas ou mais personalidades. Por exemplo, uma pessoa entra numa crise de raiva absolutamente incrível, e diz-se que está “fora de si”. Efetivamente, de alguma maneira, está habitada por um espírito da raiva, incontrolável, que tomou o comando e a desaloja do seu próprio corpo. Alguém está lá assumindo o comando contra a vontade da pessoa. E quando passa a crise, essa pessoa sente-se mal pelo dito ou feito contra a sua vontade e que, no entanto, atribui como sendo da sua responsabilidade. Gera uma grande culpa. Ocorre o mesmo com as drogas de cuja dependência as pessoas não se conseguem libertar, o vício supera a sua vontade, estão presos a ele.

Mas em certos casos pode-se detetar que não são duas partes de uma mesma pessoa, que a pessoa não está dissociada ou partida em duas, mas sim que realmente há duas entidades, a pessoa e um parasita externo. Isso restitui a integridade à pessoa, a sua unidade interior, com a deteção de um parasita exterior identificável e que pode ser expulso. Essa tomada de consciência, que pode ser comprovada clinicamente, é extremamente curativa. Como no exemplo anterior da mulher que teve um parasita durante 30 anos e conseguiu libertar-se. Já não tem pensamentos ou sugestões perversas, simplesmente desapareceram com a expulsão do intruso.

Existem muitas portas de entrada possíveis e é como uma busca policial onde se procura um criminoso. A anamnese é importante porque muitas pessoas não se recordam do que experimentaram na adolescência, por exemplo, para dar um pouco de medo, sentir a adrenalina, para viver com um pouco mais de intensidade, praticaram espiritismo como se fosse um jogo com os seus amigos. Esqueceram-se, passaram 30 anos, mas lá está o parasita. Puseram-se em contacto com uma entidade maligna que continua ativa com eles no presente.

Do mesmo modo, certos traumas psicológicos podem constituir uma porta de entrada, como também o pode um trauma físico como uma explosão, um acidente, um susto forte, uma crise familiar que gera um choque emocional. Nesses casos, há um desequilíbrio entre o corpo energético e o corpo físico. Este corpo energético pode agora ser filmado ou fotografado com uma tecnologia avançada. Constitui uma interface entre o mundo visível, sensível, e o mundo invisível. Os corpos espiritual e físico relacionam-se mediante o corpo energético. E podemos intervir sobre este corpo energético.

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Os parasitas espirituais prendem-se no corpo energético e a longo prazo podem acabar por afetar o corpo físico. Uma infestação espiritual pode assim originar uma doença física.

Falo de infestação já que existem graus diferentes de parasitas. Se se trata de uma “besta enorme”, manifestar-se-á como uma possessão, mas esta situação é pouco comum. Geralmente há muita rejeição a este assunto devido à impregnação cultural e dizer “possessão” evoca o “exorcismo” e faz com que as pessoas pensem imediatamente em filmes sensacionalistas e coisas extraordinárias de pessoas possuídas. Isso também existe, mas é muito pouco frequente, é inclusivamente raríssimo. Mas um certo grau de infestação é para nós o pão comum de todos os dias. Estamos lamentavelmente num mundo muito contaminado a nível espiritual, sem o sabermos, e precisamente por essa ignorância somos presas fáceis. Uma pessoa não se protege de um perigo que ignora, não toma as precauções necessárias.


- Qual é a relação entre estes espíritos e os espíritos de pessoas mortas?

No mundo intermédio estão também os espíritos dos defuntos, ou pelo menos transitam por lá, não sei até que ponto. Então quando uma pessoa faz este tipo de experiências de abrir-se ao mundo invisível através de rituais ou plantas pode encontrar-se com espíritos dos defuntos.

É importante distinguir quando se faz de forma correta ou não. Chamar o espírito dos defuntos para conseguir uma informação ou um serviço é uma forma de espiritismo, é uma transgressão espiritual. Outra coisa é rezar por eles. Por exemplo, muitas pessoas vêm aqui com um conflito com os seus parentes defuntos, não puderam despedir-se, não puderam nunca dizer “adoro-te , amo-te, perdoo-te, perdoa-me…”. Não se perdoaram, algo ficou por solucionar. Neste caso sim, pode-se pedir para estabelecer um contacto com o defunto para resolver esta questão. Mas não se pode mandar, ordenar, é um pedido à divindade, não é uma exigência com uma resposta automática!

Roga-se: “Eu queria reparar o que se passou com a minha mãe ou o meu pai que faleceram”. E de repente pode aparecer, na visão com ayahuasca, a presença do defunto. A pessoa fala com o defunto, dizem o que têm a dizer um ao outro e despedem-se. O defunto depois vai embora. Isso ocorre uma única vez, nada mais, nunca mais se vai repetir. É uma permissão excecional da divindade para o bem de ambos, o vivo e o morto. É uma oportunidade, um dom, uma graça de Deus para que se possa reparar, reconciliar, perdoar e curar. Por isso uma pessoa pode rezar, pedir a Deus para poder reconciliar-se ou dizer o que tem a dizer a tal pessoa e Deus o concederá ou não. Mas será apenas uma vez. Nada mais.

O mundo dos mortos e o dos vivos estão separados e está bem assim. Quando há uma interpretação dos mortos no mundo dos vivos, não é normal nem saudável. O espírito de muitas pessoas que morrem de forma violenta, repentina, fica aqui, preso neste mundo. Não têm consciência que faleceram, ficam no seu ambiente habitual, ligados à sua casa, às pessoas que querem. Então essas pessoas devem ser ajudadas a partir porque podem perturbar bastante os vivos.

Se uma pessoa reza aos santos, por exemplo, se eu chamo a Santa Teresita para que me ajude, estou a chamar o espírito de um defunto e isso sim está autorizado. Mas de novo estou a pedir, a rogar, a solicitar, a suplicar, mas não estou a convocar a Santa Teresita, isso sim seria espiritismo. Tentar convoca-la à força somente faria vir um demónio parecido com a Santa Teresita. Mas uma pessoa sim pode rezar-lhe.

De facto, qual é a diferença entre a magia e a prática espiritual cristã? Deus separa os hebreus dos povos vizinhos proibindo a adoração de outros deuses e o uso da magia. E, curiosamente, depois indica-lhes certas coisas que eles têm que fazer que, visto de fora, parece igual à magia antes proibida, como o sacrifício de animais. Qual é a diferença?3

A diferença é que a magia é uma manipulação/utilização das leis espirituais para forçar a vida, para forçar Deus, com o fim de conseguir um benefício. Na prática cristã segundo os judeus, uma pessoa reza e submete-se à vontade divina. O ser humano pede e Deus dispõe. Na magia, o ser humano quer impor a sua vontade, a partir do conhecimento das leis da vida, leis espirituais, manipulando-as. Por isso todos os grupos esotéricos ou ocultistas procuram o conhecimento das leis espirituais para poder manipula-las para o seu benefício, e estabelecem para isso formas de iniciação no seio de uma hierarquia de poder. Mais conhecimento, mais poder. É o caso dos maçons, os rosacruzes, os teosofistas e muitos grupos do movimento New Age.

A vida cristã propõe uma relação de nobre e voluntária submissão à vontade divina, uma relação desde o coração, com a confiança na bondade absoluta do Pai. Pedimos a Deus, mas Ele sabe o que realmente necessitamos e vai dispor o melhor. Muitas vezes não sabemos o que pedimos, o mais desejado não é forçosamente o melhor numa perspetiva de realização espiritual. E uma pessoa submete-se de coração porque trata-se de um Pai bom. Ele saberá de que maneira nos dar algo, quando ou como.

São Paulo disse: “Tenho uma espinha na minha carne e pedi três vezes a Deus para me tirar isso”. E Deus responde-lhe: “A minha graça basta-te”. Ou seja, não a vai tirar. Mas isso significa que dá-lhe o suficiente para ele conseguir suportar. Porquê? Pois Deus saberá. Talvez seja para mantê-lo humilde e protegê-lo do orgulho, da inflação do ego.

Por vezes, diz-se que os rituais ou liturgias cristãs são “magia branca”. Para mim, não é magia, nem branca, nem verde, nem vermelha, nem negra, porque magia para mim é manipulação e aqui trata-se de obediência ao pedido e solicitado por Deus. “Façam isso em memória de mim”.

Uma pessoa reza e pede segundo as aprendizagens reveladas e Deus dá da maneira que queira dar. É uma diferença absolutamente fundamental. Os rituais que realizamos inscrevem-se dentro desta dinâmica de obediência à revelação cristã. Assumem as funções proféticas, sacerdotais e reais de todos os batizados.


- O curandeiro pode convocar ou descartar os espíritos através dos rituais?

Depende. Sim e não. Potencialmente sim, mas na pratica depende do curandeiro, do seu nível, da força maléfica que vai enfrentar. Acredito que há certas coisas que o curandeiro não pode fazer, que superam a sua capacidade e nesse caso terá que apelar a Cristo. Todas as tradições ancestrais do mundo têm um certo grau de práticas de libertação, mas também todas as práticas de cura nelas vão acompanhadas paralelamente ou simetricamente de práticas de bruxaria ou feitiçaria.

Quando o curandeiro canta dizendo: “o sol dá-nos calor, a água apazigua a sede, tal planta nos dá força, tal outra dissolve o nosso medo”, está a realizar uma forma de louvor à vida, à criação e pronuncia ou proclama a Verdade. E toda a verdade tem uma função exorcista. O que os demónios, os espíritos malignos, fazem é essencialmente falsificar a Verdade, deformá-la. Na essência são mentirosos. Então, o facto de dizer a verdade, de recordá-la, de invocá-la, já constitui um primeiro nível da função exorcista. Restabelecer a Verdade, repele os demónios que não a suportam. Eu questionei-me muitas vezes como funcionava esta libertação que eu observava clinicamente ao cantar estas coisas tão simples.Mas funciona até um certo nível porque quando há coisas muito mais importantes ou fortes, eu creio que isto não é suficiente. Esta é a minha opinião, embora possa estar equivocado.

Os parasitas espirituais prendem-se no corpo energético e a longo prazo podem acabar por afetar o corpo físico. Uma infestação espiritual pode assim originar uma doença física.

Há bruxos pequenos e outros mais poderosos. Há pessoas a temer, que podem matar, causar loucura, levar a fazer coisas terríveis. De igual modo, do outro lado, para o dizer de alguma maneira, obviamente um santo ou uma pessoa com uma vida mística forte e oração pura, tem uma força de libertação que uma pessoa sem vida espiritual não tem. Não será o mesmo poder, nem terá a mesma eficácia. Do mesmo modo que se a Virgem pede algo ao seu Filho, ele não pode recusar. Tem um estatuto particular porque o que lhe vai pedir vai ser sempre uma coisa pura e perfeita.

Mas se eu peço algo, nem sempre vai ser algo puro ou perfeito. Por isso se reza para nos protegermos dos nossos pedidos impertinentes, embora a priori bem intencionados. Quanto maior for a elevação, a aproximação a Deus, a pureza do coração, haverá mais poder e eficácia na oração. Também, quanto maior o nível de consagração, maior o poder na oração de libertação. Ou seja, a oração de um Papa tem potencialmente mais força que a oração de um simples cristão. Embora não se sabe, se este cristão tem mais pureza de coração que o Papa. Há cristãos “escondidos” que podem estar mais próximos de Deus, só Deus sabe.

Certamente do “outro lado”, depois da nossa morte, veremos as coisas de uma maneira muito diferente. Vamos descobrir que há pessoas que atualmente não têm muita “importância” na vida social moderna, no “mundo” como se diz, mas que têm uma vida espiritual muito elevada, sem estar relacionado com a capacidade intelectual. Ninguém os vê, mas têm uma força espiritual muito grande pelo seu coração puro. E pode ser o caso também de curandeiros que podem libertar pela sua humildade. Eu vi isto e é inegável.

Mas, em termos gerais, quando o combate espiritual é levado por adversários de alta hierarquia numa seita, por exemplo, a confrontação pode requerer não somente um sacerdote exorcista, mas sim um bispo, por exemplo. Quem tenha as armas da sua consagração e ao mesmo tempo uma vida pessoal santa, é claro que terá uma maior probabilidade de vencer.

Um monge dos primeiros séculos que creio se chamava Paulo, o Simples, o simplório, tinha uma força exorcista muito grande justamente pela sua simplicidade e humildade. A sua grande pureza de coração que o fazia passar por ingénuo ou tonto era sim uma bendita e autêntica inocência.

A natureza é criada boa, não há nenhuma planta ou elemento da criação que tenha em essência um espírito maligno. Mas o ser humano pode utilizar qualquer coisa de maneira perversa. Igualmente pode-se utilizar a ayahuasca para curar se chamo o espírito da ayahuasca para curar, mas pode-se causar dano com ela se o espírito da ayahuasca é manipulado com este fim.

Este é o poder do ser humano porque tem uma palavra poderosa e assim dispõe do domínio sobre a criação. “Domínio” não é a palavra adequada, já que este poder é o do serviço. A hierarquia espiritual leva a um serviço mais alto. O ser humano é mais elevado que o mineral, vegetal ou animal na hierarquia da criação, e por isso deveria cuidar deles por ser o que tem maior responsabilidade.

Mas o bruxo inverte esta ordem hierárquica, profana-a. Por exemplo, deixa-se possuir pelo espírito de um felino e torna-se um predador, um devorador que pode chegar até a matar pessoas e beber o seu sangue, como um tigre, um leão ou um puma. A inversão da ordem da criação é propriamente um ato demoníaco. Não é que o espírito da planta ou do felino seja maléfico em si, é o uso perverso do ser humano que o distorce.

O espírito da coca é extraordinário. Não teria existido o império Inca nem Machu Picchu sem os ensinamentos desse espírito. Mas se se transforma a coca, se é profanada, e se torna cocaína para um uso profano, transgressor das leis da vida, pode levar ao vício. É o uso que se faz do espírito das plantas ou da natureza, a predisposição do ser humano no seu uso para o bem ou para o mal, que determinará se este espírito servirá para o bem ou para o mal.

Na magia ou missas negras utilizam até hóstias consagradas. Será que a hóstia é má? Pelo contrário, a sua altíssima sacralidade manipulada permite um maior grau de perversão e poder da malignidade. É a inversão e a falsificação que é demoníaca, não o objeto em si.

Numa sessão de ayahuasca pode haver contaminação maligna se houver ausência de proteção ritual correta, negligência, má preparação, intenção perversa, contexto tóxico, associação com outras substâncias inadequadas, mas a planta é inocente. Não foi utilizada corretamente.

Um mestre curandeiro ensinou-me durante anos e preparava-me remédios com plantas para tomar. E rezava falando diretamente ao espírito das plantas, por cima do vaso do remédio, dizendo-lhe de uma maneira muito simples: “Vais dizer coisas boas ao doutor, não lhe vais ensinar tolices”. Era ao mesmo tempo uma súplica e uma ordem. Os curandeiros normalmente dizem que “não nos devemos deixar dominar pela planta”. Não deixar que se inverta a ordem da criação. A planta, o seu espírito, deve ser respeitado, mas isso não significa submeter-se a ele, inverter as relações e deixar-se possuir.

Não há nada de mal na criação visível, tudo tem um espírito, tem um certo grau de consciência, cada coisa ao seu nível. Mas apenas o ser humano tem liberdade, uma capacidade reflexiva, uma consciência de si mesmo, da palavra fundadora. Esta superioridade na hierarquia da criação torna-o responsável pelo seu cuidado e respeito. Esta liberdade mal orientada dá-lhe poder para eventualmente inverter esta ordem, exercer um domínio de exploração em vez de serviço e, assim, assumir um papel demoníaco ou satânico.


- Você pensa que a relação entre a sua fé cristã e a sua atividade como curandeiro é complicada ou simples?

Bom eu diria que à medida que o tempo passa sinto cada vez menos conflito e, pelo contrário, há uma congruência maior e complementaridade. Agora para mim é muito claro que as plantas e tudo o que está relacionado com esta medicina tradicional constituem uma forma prática de acesso ou uma porta de entrada no mundo espiritual, mas não um fim em si. Se por exemplo me dessem a escolher entre as plantas e todo este conhecimento associado a elas e a fé cristã e a sua prática sacramental, não seria muito complicado, escolheria a fé e os sacramentos.

Não pertencem ao mesmo nível. A vida espiritual não necessita das plantas, não é algo indispensável. É um caminho possível, uma via de entrada excelente. Permite-nos a nós ocidentais sair do nosso racionalismo terrível onde a fé é muitas vezes muito mental, muito conceptual, pouco encarnada. Estas medicinas tradicionais mostram-nos que temos um corpo e que a espiritualidade não implica sair do seu corpo para viver nas altas esferas supercósmicas, mas sim fazer descer o espírito à nossa realidade quotidiana e integrá-lo no e mediante o nosso corpo.

Eu não vejo contradição entre o uso correto das plantas e a fé cristã, mas sim uma sinergia. Porém, existe uma ordem hierárquica. As plantas, e todas estas práticas ligadas a elas, são uma introdução à vida espiritual que é de nível superior. As plantas são precursoras da CARITAS, o amor espiritual, levam-nos a ele. Se forem utilizadas bem, adequadamente, com respeito, com uma ritualidade saudável e coerente, levam à vida espiritual e esta à divindade. A nossa maneira de praticar estas medicinas ou o caminho que seguimos com elas leva a Cristo, à Virgem, ao Espírito Santo, à Trindade, vividas como uma realidade tangível. Se uma pessoa se abre, se o quer e o aceita, não é nenhuma obrigação.

Temos muitas pessoas que vêm aqui que não são cristãs, que não têm nenhuma educação cristã, ou são cristãos que abandonaram a fé, ou cristãos indiferentes, ou cristãos “culturais”, e muitas vezes a sua fé é reativada ou descoberta. Ocorrem muitas conversões, ou pessoas que voltam para a Igreja, voltam a praticar, aproximam-se dos sacramentos. E tudo isto porque com a experiência com as medicinas tradicionais num contexto corretamente ritualizado, com orações, a fé faz sentido, é vivida, é sentida e é experienciada. Ao longo dos anos este fenómeno aumenta constantemente.

Este espaço representa uma ferramenta extraordinária para redescobrir a fé, ou descobrir aspetos dela que tinham sido postos de lado, ou anteriormente ignorados. Permite ver como se encarna no quotidiano de cada um. Não são experiências etéreas, de se estar “a voar” em sonhos fabulosos, mas sim experimentar dimensões transpessoais, de um contacto com a transcendência, da observação da energia da vida em toda a criação e em nós, de comprovar a força da oração, que faz sentido para a própria pessoa e tudo isto conectado à integração na vida quotidiana. Para mim, a contradição inicial vai desaparecendo e o que me parecia muito distante, aproxima-se. Estabelecem-se pontes, conexões, cada dia mais evidentes, e que encontram apoio na prática da vida espiritual, na liturgia, por exemplo.

A natureza é criada boa, não há nenhuma planta ou elemento da criação que tenha em essência um espírito maligno.

Quando se tomam as plantas, a ayahuasca em especial, a primeira coisa que surge é um confronto consigo mesmo. Uma pessoa encontra-se com a sua escuridão, com a sua sombra, medos, coisas não resolvidas. E a própria pessoa vê isso. Por exemplo, alguém que durante anos maltratou a sua esposa porque não lhe dava atenção, não a escutava. É tão evidente, tão claro, que leva ao arrependimento porque uma pessoa realmente dá-se conta da sua atitude. A tomada de consciência do erro, do “pecado”, da falta, da ignorância, da negatividade, leva à necessidade de pedir perdão. E felizmente assistido com a luz, a evidência de que pode agir de forma diferente, que há outra forma de lidar com o problema.

Depois ou simultaneamente vem o reconhecimento de tudo o que recebeu na sua vida, apesar das dificuldades e das infelicidades. Uma pessoa pode ver que “o meu pai maltratou-me, a minha mãe era asfixiante, mas foram a via para que eu chegasse a esta vida, sem eles não estaria vivo”. Faz-se a revisão dos juízos negativos e relativizam-se: “O meu pai era ausente, todo o tempo fora, mas era porque trabalhava, porque queria dar-me o melhor, era a sua maneira de me amar, fez o que podia segundo a sua personalidade”. Esta tomada de consciência leva à gratidão. Agradecer à vida, e agradecer a Deus, e agradecer o ar, as plantas…

Encontramos sempre estes dois elementos, perdão e gratidão. Não importa a crença ou não, a religião, a cultura, o nível socioeconómico, o género. Faz parte da condição humana, quando se abre à consciência, vê-se surgir estas duas coisas da sua profundidade, de maneira espontânea. Perdão e Gratidão. É tão espontâneo que inclusivamente muitas vezes a pessoa diz “perdão, perdão” sem saber realmente porque deve pedir perdão. Numa sessão seguinte, vai sendo mais específico: “tenho que pedir perdão ao meu pai, tenho que perdoar o meu filho, tenho que perdoar-me…”. Noutras palavras, aparece esta consciência da nossa imperfeição, das nossas limitações, de que não somos uma pessoa 100% perfeita, que temos uma parte sombria e vemos como isso afeta os outros, a nós, a nossa relação com a vida e com Deus.

E o inverso, manifesta-se o outro lado da vida, como, apesar das nossas falhas, das nossas deficiências, sem o merecermos, foi-nos dada vida, foi-nos dado amor, carinho, dinheiro, bens materiais, saúde, momentos de alegria, etc. “Graças à vida que me deu tanto,”. Graças aos meus pais, graças a um certo professor, graças ao meu irmão, graças ao vizinho, graças à natureza, graças a Deus. Isto será contraditório com o cristianismo? Se é contraditório então eu não entendi nada do cristianismo. A consciência em termos cristãos de que sim sou um pecador, mas ao mesmo tempo sou um filho herdeiro da vida, herdeiro de Deus. Vi muitas coisas negativas e até malignas de mim, mas não sou um demónio nem um desgraçado nem um órfão. Para mim, há algo mais cristão que isto?

E esta tomada de consciência faz-se a pelo meu corpo, pela minha encarnação neste mundo, pela minha experiência mais quotidiana, pela minha realidade mais comum. Quando uma pessoa observa estas tomadas de consciência, tudo se torna de repente muito simples, muito evidente. Nada de magia, nem branca nem de outra cor. A planta é um mediador particular quando é bem usada, dentro de um ritual coerente, com uma boa preparação. Facilita o contacto com as profundezas do seu ser interior e com a transcendência que habita aí na sua intimidade.

A minha opinião é que qualquer pessoa, a mais sombria, a mais delinquente, a mais negativa, tem um espaço íntimo, o seu espírito de certa maneira, que é intocável. É algo realmente incrível! Os espíritos maus podem afetar a minha mente, os meus sentimentos, mas não podem entrar neste núcleo, no espírito, onde somente estou Eu com Deus. A liberdade interior nunca irá ser 100% afetada, existe sempre algo inacessível ao mal. Parece-me totalmente coerente com a fé cristã.

Por isso quando há pacientes que tiveram vidas muito pesadas, que mataram, que consumiram e venderam drogas, que fizeram barbaridades, às vezes muito graves, nestes casos uma pessoa vê que debaixo de todos esses escombros da sua vida, permanece uma luz. O espírito, a alma, a consciência divina, não sei como o chamar, mas está debaixo dos escombros. Por isso pode-se ajudar estas pessoas, ter fé, ter esperança, saber que não é em vão que se vai tentar limpar estes escombros, porque no fundo permanece a luz.

Quando se utilizam estes conhecimentos ancestrais da medicina tradicional amazónica, associando-os a um contexto doutrinal cristão, produzem-se maravilhas. A força da cura e da conversão é incrível. Com esta finalidade aqui tudo é consagrado a Deus. Consagra-se o lugar, a ayahuasca, tudo o que é utilizado, as plantas, e são colocados, em especial a cura, debaixo da jurisdição da Virgem. Invocam-se os anjos e os santos como protetores espirituais. Como em qualquer caminho espiritual há protetores favoritos, prediletos.


- Na sua opinião, os espíritos, o encontro com eles e acreditar neles, são necessários para o processo de cura dos pacientes?

Não é importante que os pacientes acreditem para iniciar este tratamento. A maior parte dos pacientes que chegam a nós, não acreditam na existência de espíritos. Nem de Deus. Nunca aprenderam sobre isso ou nunca tiveram uma experiência neste campo. Mas durante o processo, muitos descobrem esta realidade espiritual, veem ou percebem os demónios e podem ver como influenciaram a sua vida. Os espíritos não têm uma forma real, substancial, não têm corpo. Mas nós percebemo-los através do filtro do nosso cérebro e da nossa bagagem simbólico-cultural. Fazem-se percetíveis para nós a partir da nossa materialidade, do nosso sistema percetual. Quando um místico vê um anjo com asas brancas nas suas costas, não é uma realidade material, mas sim uma realidade espiritual que expressa, na sua forma percetível, a simbologia do seu ser. As asas simbolizam a sua dimensão espiritual que o podem elevar em direção ao Céu – céu espiritual, não o céu material. Os demónios também têm asas pela sua natureza igualmente espiritual, mas são negras, simbolizando a sua ligação à escuridão. São figurações, representações, e não uma “apresentação”, de algo real ou presente ao nível físico.

À medida que a consciência se vai afinando, estas representações modificam-se até desaparecerem. São suportes necessários para aceder à consciência espiritual. Não significa que são inexistentes ou virtuais, mas sim que é a nossa imagem interior desta realidade espiritual que se modifica, indo de um simbolismo muito colorido e ilustrativo para as realidades emocionais, psíquicas e espirituais que as mantêm. Vale a pena insistir no facto de que não são somente realidades emocionais e psíquicas como também espirituais.

Assim um monstro pode representar o meu medo por exemplo ou um aspeto perverso da minha personalidade, mas também pode manifestar a presença de uma entidade demoníaca que me parasita e me conduz à perversidade. Trata-se de um discernimento terapêutico a ser exercido já que implica uma abordagem diferenciada.

Podemos tentar racionalizar estas experiências até um certo ponto, mas para progredir na vida espiritual será necessário passar de uma leitura puramente psíquica às realidades espirituais.


- O encontro com os espíritos é necessário para o processo de cura?

Não é necessário numa primeira instância, mas é inevitável se se quer seguir no caminho espiritual. Outras vezes, é imposto quando há uma infestação importante. Uma pessoa não escolhe isso, apenas é evidenciado. Há pessoas que vêm para seminários de duas semanas e não vão ficar absolutamente convencidas da existência dos espíritos por ser uma estadia breve. Embora os tenham visto ou percebido, os reflexos da racionalidade voltam rapidamente quando retornam à vida comum. Não estão preparados para abordar esta realidade, não dispõem de instrumentos conceptuais para a perceber, o positivismo da sociedade trava a aceitação, há medo de ser ridicularizado. Porém, vão sentir uma mudança psicológica, emocional, nas suas relações e progridem na sua vida. Respeita-se a liberdade de cada pessoa em relação a essas experiências.

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Agora bem, se uma pessoa quer realmente experimentar a vida espiritual, isto será imposto no caminho. Não se trata de uma simples crença. Se bem que a fé não se apoia em provas matemáticas nem científicas, é no entanto necessário experimentá-la. A fé bruta ou fé cega que é a adesão incondicional ao que disse um fulano ou outro, para mim revela uma forma de crença supersticiosa. A fé requer inteligência, reflexão e a comprovação empírica nas nossas experiências de vida.

De facto também não se pode experimentar tudo nem comprovar tudo. Como disse São João “ Nunca ninguém viu Deus”. Nunca esgotaremos algo que nos supera totalmente e sempre ficará um enorme mistério que justifica precisamente a fé. Porém, entre tudo e nada, existe um ponto médio onde sim se pode experimentar, onde se saboreia algo da realidade espiritual, onde se experimenta o seu sentido e coerência, como uma antecipação do “reino que há-de vir”.

As experiências espirituais às vezes surgem na vida de uma pessoa sem que ela as procure intencionalmente. Mas também não é proibido abrir-se a estas experiências, preparar-se, estar disponível para as receber. Não são induzidas através de atos mágicos, mas sim porque uma pessoa se oferece para receber a graça. E a graça virá por si mesma. Na minha opinião, quando uma pessoa pede de coração, com humildade, e respeita os passos a seguir, haverá sempre alguma resposta.

A resposta será adaptada a cada um. Porque quando há este contacto com o mundo invisível para um ocidental, logo se coloca a questão de como integrar esta experiência na vida psíquica, simbólica e no quotidiano. Para um ocidental moderno do século XXI, a aparição de um demónio, de um anjo ou de uma realidade transcendental pode ultrapassar a sua capacidade de integração. O que fazer com essa experiência? Pode ser que não faça nada e o classifique rapidamente como uma sugestão porque não sabe onde colocar essa experiência nas suas referências habituais, na sua cosmovisão. Ou tem um referencial simbólico ou religioso que lhe permite processar a experiência. Ou terá que mudar de paradigma de pensamento e rever a sua maneira de conceber o mundo e a vida.

Para um indígena o problema é muito diferente porque vive dentro de uma cosmovisão que integra estas realidades espirituais. Está imerso numa cultura que fala sobre isto todos os dias, onde há contos, histórias dos idosos, lendas, mitos. É algo quotidiano e então saberá onde colocar esta experiência na sua cartografia ou cosmogonia interior. Para a nossa cultura ocidental positivista, materialista, determinista, que nega a existência do mundo invisível, será considerado como uma fantasia ou pior um delírio revelado pela psiquiatria, uma crença de um passado ultrapassado, uma superstição da idade média. Com isso pretende-se anular a realidade dessas experiências.

Porém, a nossa cultura ocidental, antes de se racionalizar de uma maneira extrema, foi construída e alimentou-se essencialmente da fé cristã. E até hoje, a doutrina, o magistério, mantêm este valor da revelação inicial. Um valor considerável porque justamente permite-nos situar estas experiências no mundo invisível, encontrar-lhes um sentido e uma coerência. Necessitamos de realizar uma exploração do mundo angelical desde as raízes esquecidas do cristianismo. Revisitar o nosso conceito sobre o mundo invisível da natureza desde a dimensão do Cristo cósmico, o alfa e o ómega.

A cultura ocidental pode renovar-se a partir de um cristianismo “moderno”, por assim dizer, a partir do desafio e da perícia das culturas ancestrais em relação aos estados modificados da consciência e a sua relação estreita com o mundo invisível. Este modernismo da fé na realidade supõe retomar os vínculos com os ensinamentos originais do cristianismo. Porque quando uma pessoa lê os evangelhos, encontra estas realidades em todas as páginas. Os Atos dos Apóstolos contam múltiplas histórias. O Patrístico dos fundadores da Igreja, dos monges do deserto do Egipto ou da Síria, está repleto de descrições dessas relações com o mundo invisível, de experiências místicas.

Lamentavelmente, a teologia cristã ocidental, não tanto a oriental, tornou-se muito conceptual. Nas universidades da Idade Média iniciaram-se debates teóricos desprendidos da experiência mística. E isso foi piorando com o tempo até Santo Tomás de Aquino, passando por Santo Agostinho. Eu não sou nenhum especialista nem teólogo, mas vejo como religiosos e sacerdotes que tomam as plantas, redescobrem o concreto e real dessas experiências que conhecem somente de maneira conceptual. Esta realidade psíquica manifesta-se como encarnada no seu próprio corpo. E é tudo uma descoberta.

Tomás de Aquino, embora seja uma referência teológica atual, conta ele mesmo como durante uma missa, aos sessenta anos, teve uma experiência mística que sacudiu os seus fundamentos. Saiu desta experiência e declarou: “tudo o que escrevi até agora é palha para o fogo”. Nunca mais voltou a escrever e não terminou a sua Suma Teológica. A sua breve experiência mística foi o suficiente para relativizar anos de trabalho intelectual. Queria agarrar o espírito, mas foi agarrado por Ele. Temo ser pretensioso ou vaidoso dizendo isto, em relação a um monumento da teologia, mas se ele mesmo o reconhece…

Parece-me evidente a partir da minha experiência o excesso de conceptualização e intelectualismo do clero contemporâneo. Vi aqui eruditos, teólogos, intelectuais de grande calibre, mas quando tomam as plantas, surge muitas vezes uma grande dissociação entre os seus conhecimentos teóricos e a sua vida sensível. E então abrem-se para uma perspetiva totalmente diferente da fé. De repente, tomam consciência, como me disse um, que tudo o que havia lido na sua vida, finalmente era real, uma realidade encarnada, corporal, sensível hoje em dia no seu próprio corpo e realidade.

E isso é fabuloso na minha opinião porque estas pessoas sim têm uma educação, uma cultura, uma erudição, uma capacidade de reflexão que lhes permite potencialmente assimilar a sua experiência pessoal dentro de uma cosmovisão elaborada que conhecem intelectualmente e que podem então tornar plenamente sua. É um potencial considerável de reforço da fé, de clarificação da sua coerência profunda. Multiplica-se a sua capacidade de entendimento da fé a partir dessa revelação pessoal com base na sua experiência com as plantas. Têm as ferramentas para isso.

A cultura ocidental pode renovar-se a partir de um cristianismo “moderno”, por assim dizer, a partir do desafio e da perícia das culturas ancestrais em relação aos estados modificados da consciência e a sua relação estreita com o mundo invisível.

Eu sofro quando vou à missa e escuto um dos relatos frequentes onde Jesus expulsa demónios e depois, na homilia, o sacerdote salta por cima disso, não o comenta porque não sabe o que fazer com essas histórias que o incomodam. Ou muitas vezes comenta-o simplesmente dizendo que isso nos demonstra que Jesus faz o bem, se compadece de quem sofre. Mas não se trata de somente dar um copo com água, vestir quem está nu, visitar um prisioneiro, mas sim de um combate frente a frente contra o Maligno. Expulsa-se um demónio do corpo de uma pessoa num instante. Não é pouca coisa. E porque não se faz mais isto hoje em dia? Porque se deixou de fazer? Desculpando a ironia, mas faltaram a Jesus estudos de psiquiatria para dar-se conta de que se tratava de um esquizofrénico? E então, como o curou? Por sugestão?

Eu tive a oportunidade de conversar com um sacerdote exorcista de uma capital europeia que me disse que há muitas pessoas com problemas de histeria, sugestionados. Claro, aqueles casos existem, mas e os possuídos e os infestados, desapareceram? Este sacerdote exorcista contou-me como ele procede. Quando trata um paciente, este é recebido por umas senhoras idosas de boa vontade que assumem uma permanência. Não têm nenhuma formação em psicologia e com um bom coração dedicam-se basicamente a tranquilizar o visitante. Aconselham-no a descansar, a ter fé, esperança, a confessar-se, rezar, adorar o Santíssimo, e assim o problema passará. Se elas considerarem que é um caso especial, grave, incompreensível, avisam o sacerdote exorcista. Este diz-me que a primeira coisa que faz é mandar o paciente para um psicólogo ou um psiquiatra para este lhe dizer se é uma patologia mental. Ou seja o sacerdote exorcista submete-se à opinião da “ciência médica”, se é que a psiquiatria pode ser considerada uma ciência já que os diagnósticos resultam de uma votação consensual. E existem categorias nosográficas prontas para classificar este tipo de paciente e colocá-los em contenção com uma camisa-de-forças química. Se, depois de tudo isto, o psiquiatra admite excecionalmente que escapa à sua capacidade, o sacerdote solicita uma permissão individual ao bispo para realizar exorcismos ou orações de libertação.

Tendo em conta tantos obstáculos pergunto-lhe: “Padre, mas você em 5 anos quantos casos tratou?”. “Nenhum” respondeu-me. “Você não realizou nenhum exorcismo?”. “Não, não há necessidade”. Então numa capital europeia, com milhões de habitantes e tantas coisas não tão santas, em 5 anos, este sacerdote exorcista não detetou nem um caso.

E questiono-me como Jesus em Cafarnaum, que nessa época devia ter alguns milhares de habitantes, encontrou tantos possuídos ou infestados. Ou todos os judeus dessa época estavam infestados e nós em Bruxelas, Madrid, Paris ou Roma somos imaculados, ou há algo que nos está a escapar. Se não são detetados, também não se age para libertar os infestados. E não atiro pedras a este sacerdote porque sei que atualmente, simplesmente não recebem uma aprendizagem sobre este assunto. Um sacerdote chileno, meu amigo, doutor em teologia, disse-me ingenuamente que nunca lhe ensinaram sobre o combate espiritual. Nomeiam-se sacerdotes de boa vontade, mas sem nenhuma formação. E contudo o assunto está em todas as páginas dos Evangelhos.

Na minha opinião, isto é muito grave para a saúde das pessoas, física e claro espiritual. Estamos numa época onde há uma multiplicidade de práticas ocultas, espiritistas, sectárias, satânicas, coisas terríveis, grupos mafiosos, é terrível e nós, os cristãos, estamos aqui, esperando passivamente a ver o que se passa, quando temos as ferramentas de combate e da vitória. Temos o poder da Igreja mediante a sucessão apostólica, o poder de Cristo nas mãos dos consagrados, o poder da Virgem que derrota Satanás, o poder de São Miguel como chefe das armadas celestiais, o poder do sangue dos santos e mártires, e não são usados!

Por isso acredito que há que desracionalizar a fé, desocidentalizar a Igreja, aproximarmo-nos do cristianismo oriental ou dos cristãos dos povos ancestrais. Em 2006 em Taiwan, realizou-se um congresso sobre xamanismo-cristianismo organizado por um bispo indígena de Taiwan. As freiras e os sacerdotes que trabalham no terreno e que vivem muito próximos dos indígenas constatam que o xamanismo deve ser valorizado, considerado e observado de uma forma renovada. O seu trabalho é admirável e o relatório deste evento quase revolucionário4.

Para os religiosos ou cristãos indígenas, de alguma maneira é-lhes pedido para abandonar a sua identidade, negar as suas raízes, rejeitar o que é considerado como primitivo, pagão. Na minha opinião isto é profundamente errado, injusto e arrogante. A Igreja está orientada para pregar, evangelizar, para a salvação, mas deixou de lado a cura. Jesus primeiro cura e só depois prega. Manda também curar os doentes e libertar os demonizados.

Aqui na América latina, existem grupos de teologia indígena ou teologia índia, que reúnem-se desde há uns 20 anos, creio. Realizam encontros com indígenas cristãos e sacerdotes. Nunca participei, mas pelo que vi em relatórios, recomendam escutar a voz dos povos indígenas. É também o quer dizer o Papa Francisco com esta convocatória de um Sínodo panamazónico para Novembro de 2019. Agora bem, qual é a voz das nações indígenas? O que dizem? Onde se expressa a voz dos indígenas? Em publicações? Em textos? Em livros? Em discursos? No Youtube? Não, a voz dos indígenas expressa-se na sua prática de cura física, psicológica, emocional e espiritual, nos seus rituais, nos seus cantos sagrados ou curativos, nas suas tradições.

Enquanto que uma pessoa não partilhar a experiência na qual se encontra com a modificação induzida e ritualizada da consciência, com ou sem plantas, acredito que não pode escutar realmente a voz dos indígenas. É surpreendente para um ocidental, gera muito medo e insegurança. Também não se trata de idealizar o mundo indígena depois de tê-lo satanizado. Uma pessoa não tem de deixar as suas raízes ocidentais, cristãs, para entrar nesses espaços, como também não deve pedir a um indígena para abandonar as suas para entrar na Igreja.

Mas, o cristão poderá averiguar que sim os espíritos existem, que qualquer um os pode experienciar e que são requeridas condições adequadas para isso. Enquanto os grupos de teologia indígena, índia, não viverem essa realidade, o que podem acrescentar? O que poderão receber do mundo indígena se querem ficar na posição de quem dá mas não recebe? Que dignidade oferecem aos povos indígenas se os considerarem somente como pobres e incapazes de acrescentar algo da sua riqueza cultural e espiritual?

Os membros da Igreja que participam nesses encontros no geral não conhecem diretamente, por experiência própria, as metodologias propostas pelas medicinas tradicionais na sua esfera espiritual. Inclusivamente, muitos indígenas cristãos que participam nesses encontros também não têm estes conhecimentos. Como se tornar-se cristão implicasse renunciar esta sabedoria ancestral.

Eu tive uma experiência direta com um chefe indígena cristão. Veio a Takiwasi por certas circunstâncias da vida e tomou ayahuasca e outras plantas mestras pela primeira vez com um francês! É um paradoxo que seja um europeu a reconectá-lo com as suas próprias tradições. Agora nos seus retiros cristãos com jovens introduziu o uso ritualizado de plantas como meio de purificação, de meditação, de abertura à dimensão espiritual. A sabedoria ancestral fecunda o cristianismo e vice-versa.

Este receio da medicina tradicional está relacionado com o facto de que também existe muita bruxaria nos povos indígenas e para isso também são usadas plantas medicinais, inclusivamente a ayahuasca. Os indígenas têm horror à bruxaria à qual estão constantemente expostos com riscos de ficarem doentes, enlouquecerem ou até morrerem. Muitos curandeiros indígenas e mestiços, não sei se a grande maioria, também aprendem algo de bruxaria supostamente para se defenderem de ataques de bruxos. São meios curandeiros e meios bruxos. A luta contra os bruxos é quase um combate corpo a corpo.

Eu também tenho que lutar contra os ataques de bruxos, mas não corpo a corpo porque peço a proteção e a ajuda de Jesus. Assim demonstra-se que não é necessário aprender bruxaria para uma pessoa se defender. Isto representa uma rutura com a tradição guerreira indígena. Não é necessário entrar nessas lutas com as mesmas armas que no final o levam a converter-se num bruxo, mesmo que seja parcialmente. Mas sim é preciso ter fé, uma fé viva. As agressões de bruxaria, magia, feitiçaria, podem perturbar muito fortemente a nível físico e mental. A tradição cristã proporciona as ferramentas espirituais para este combate. Jesus venceu o mal. Por isso acredito que a prática cristã destas medicinas é um caminho para a evangelização.

Espiritus4

Porém, a “evangelização” também tem que ser recíproca. Ou seja, devemos aprender a linguagem dos indígenas e deixarmo-nos instruir pela sua sabedoria. Para escutar a voz dos indígenas, não significa realizar um questionário sobre a sua maneira de pensar ou fazer um estudo antropológico. Não acrescentará muito perguntar aos indígenas, por exemplo, como eles veem a Igreja do futuro. Não é esta a sua maneira de se expressarem. Mas se se participar nas sessões de ayahuasca ou fizer retiros de dieta na selva, os cantos de cura ou de aprendizagem, os ícaros, vão ensinar 10000 vezes mais que uma declaração formal ou um texto. E entende-se esta linguagem universal não com a mente mas sim com o coração.

É um outro tipo de linguagem, uma linguagem metafórica, analógica, que atravessa o corpo e as emoções, que se dirige ao cérebro direito que está relacionado com a intuição, a simbologia, a poesia. O cérebro esquerdo expressa-se mais num contexto de congressos, conferências, aprendizagens formais. Estas formas ocidentais, racionais, têm o seu espaço e vantagens, mas não correspondem à linguagem indígena. São duas metades diferentes e é tão difícil para os ocidentais abrir o seu hemisfério direito como é trabalhoso para um indígena ser produtivo ao utilizar as funções do cérebro esquerdo que não treinou.

O cérebro direito não está acessível ao discurso racional, mas sim à palavra ilustrativa, à parábola como faz Jesus. Jesus não dá aulas de teologia, mas sim usa imagens, aforismos, comparações. O mundo espiritual não pode ser contido numa linguagem racional. É como o amor. Se gostas de uma mulher, o que lhe vais dizer: “Amo-te! És linda”! Isso é o que todos dizem! Para dizeres o “teu” amor, de maneira específica, terás que escrever-lhe um poema ou utilizar a linguagem simbólica das flores, com um bilhete muito pessoal, enfim, algo teu, único, singular.

É outra linguagem, uma linguagem diferente, uma linguagem metafórica, analógica, poética, simbólica. E nós na linguagem ocidental perdemos bastante esta dimensão não racional, ficamos empobrecidos, reduzidos ao funcional. Esta ampliação da nossa linguagem é algo que os indígenas nos podem acrescentar, entre outras coisas.


- Quer acrescentar algo para concluir esta entrevista?

A contribuição das medicinas tradicionais bem aplicadas, insisto, bem desenvolvidas, consagradas para dizê-lo rapidamente, com a oração, a colocação sob o olhar de Deus, sem manipulação das pessoas, intervém hoje em dia, nesta mudança da sociedade, de paradigma, para incorporar melhor a noção de espírito. Poderíamos dizer que o Antigo Testamento representa a teologia do Pai, o Novo Testamento a teologia do Filho e recentemente estamos a abordar a teologia do Espírito Santo. Teoria e Prática.

Também não se trata de justificar o uso das plantas psicoativas ou sagradas das medicinas tradicionais. De facto, representam uma via extraordinária para abordar o mundo espiritual, o mundo invisível interior e exterior. Têm um papel de facilitadoras, de mediadoras, mas não podem ser consideras como um fim em si. São medicinas que abrangem a dimensão espiritual, mas não constituem uma religião. Adicionalmente, a dimensão espiritual que oferecem é totalmente compatível e em sinergia com a fé cristã, nas condições que assinalei anteriormente.

Enriquecem a experiência desta fé, abrem-na a outras dimensões que esquecemos tal como a corporeidade, a cartografia do mundo espiritual, a permanência do combate espiritual. Oferecem conhecimentos que surgem de uma experiência milenar. Sobre este assunto, podem ser feitos livros, filmes, conferências, entrevistas, tudo isso é bom, mas há um momento em que se tem de experienciar. Nada substitui a experiência direta, no seu próprio corpo.

As plantas sagradas também não são o único caminho. Por exemplo, as experiências do movimento carismático têm esta dimensão de cura, de combate espiritual, de estados modificados da consciência. Ou os exercícios espirituais do Santo Inácio, para nos limitarmos ao cristão. Há agora uma necessidade de ter mais sacerdotes exorcistas. O Papa Francisco reconheceu a associação internacional de exorcistas. É altamente desejável que se vão aprofundando as dimensões do combate espiritual já que na minha opinião estamos realmente numa situação de emergência espiritual. Frente ao Mal, o Maligno, que invade a nossa época atual, temos de ser “astutos como as serpentes e puros como os pombos”.

Astúcia não no sentido de malignidade, mas como filhos da luz frente aos filhos da escuridão, frente às estratégias perniciosas de certos “irmãos”. Se pretendemos ser filhos da luz, temos de participar nesta luta, ousar, sabendo que temos o potencial incrível que Jesus nos deixou e os séculos de experiência acumulada da tradição e vida cristã, da mística, dos santos. Há algo de urgente e não é para ser encarado como “vamos refletir, vamos ver…”. Os fenómenos de crescimento exponencial dos vícios, dos incestos e abusos sexuais, das práticas esotéricas e ocultistas quando não satânicas, da corrupção generalizada, do tráfego de pessoas, das novas formas de escravatura, não permitem ter uma atitude passiva e contemplativa. A pedofilia na Igreja mostra que “o fumo de Satanás”, como disse Paulo VI, penetrou até ao coração da Igreja. São assuntos graves e muito sérios que necessitam de ação e rapidamente, embora sempre com prudência.

A nossa iniciativa no centro Takiwasi tenta demonstrar que é possível levar a cabo este combate, com as nossas limitações, por certo. Propõe sair dos debates teóricos para oferecer factos, passar do discurso à prática. E existem factos concretos, pessoas que deixam o vício, pessoas que se convertem, mudanças de vida, abordagens tangíveis entre o mundo indígena e o mundo ocidental, e entre ambas espiritualidades.

A árvore será reconhecida pelos seus frutos.


Entrevista de Jacques Mabit por Alberto Dubbini, Centro Takiwasi, Agosto 2018. Transcrição literal da forma oral, com as aproximações e limitações deste tipo de trabalho. É uma conversa espontânea e não uma exposição médica, antropológica ou teológica. Traduzido do españhol para o português por Joana Santos.

1 Alberto Dubbini é formado em Ciências Geológicas e professor de ciências naturais no colégio "Luigi di Savoia", Ancona. Ele também possui mestrado em ciências religiosas, Instituto Superior de Ciências Religiosas "Italo Mancini", Universidade de Urbino Carlo Bo, Itália.
2 Percebi depois que esse mesmo fenômeno havia sido descrito em outros lugares, como nos "graniceros" do México. A tradição quíchua os chama de “filhos do relâmpago”, veja: Bianchetti, Maria Cristina (2014), Curanderos, especializaciones y afecciones que rigen aún hoy en el área andina centro oeste suramericano, Scripta Ethnologica, Vol. XXXVI, Bs. As pp. 129-165.
3 Veja P. Juan-Carlos Rodríguez, Hermenêutica da Magia na Bíblia, monografia não editada, biblioteca Takiwasi.
4 LA RENCONTRE DU CHRISTIANISME ET DU CHAMANISME EN ASIE, Bulletin EDA n° 457, Dossiers et documents N° 2/2007, Février 2007. Improvements In The Meeting Of Shamanism And Christianity Among The Indigenous Peoples Of East Asia And Oceania, Resources “EAPR” East Asian Pastoral Review 2006, Volume 43, Number 4, A Report on an International Symposium held in Taiwan in February 2006.